Psicóloga Julia de Oliveira Pereira

Autonomia do idoso

A palavra Autonomia, segundo o dicionário, significa “capacidade de governar-se pelos próprios meios”. Para o Ministério da Saúde do Brasil (2006), a autonomia é uma vertente central do envelhecimento saudável, sendo fundamental promover o direito à autodeterminação, mantendo sua dignidade, integridade e liberdade de escolha, para promover qualidade de vida. Infelizmente, na prática, não é exatamente assim que nos deparamos com o envelhecimento.

Segundo Mesquita e Portella (2004), o envelhecimento é um fenômeno biológico, psicológico e social que atinge o ser humano na plenitude de sua existência, modificando sua relação com o tempo, seu relacionamento com o mundo e com sua história. Observa-se, além disso, que o envelhecimento traz consigo inúmeras modificações no organismo como um todo, que resultam na diminuição do desempenho motor, principalmente na realização das atividades da vida diária, podendo levar o sujeito a tornar-se dependente, como ressalta Andreotti e Okuma (1999).

Esta dependência pode ser definida como perda da capacidade funcional, ou seja, a capacidade de realizar as atividades diárias, de forma independente, incluindo atividades como deslocamento, autocuidado e participação em atividades ocupacionais (UENO, 1999).

Percebo, ao longo de minha jornada acadêmica, que um dos grandes medos da velhice é justamente perder a capacidade sobre si mesmo, ou seja, a autonomia. Sendo assim, acredito ser importante refletir o tema. Será que perdemos a autonomia a partir do momento em que uma doença se instala, ou perdemos de formas tão sutis que mal percebemos?

Desde que iniciei meus estudos na psicologia me interessei pela área da psicogerontologia, passando a realizar vários estágios em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) e, desta forma, refletir sobre o tema.

Em meu último ano do curso de bacharelado, realizei uma pesquisa sobre a contribuição da Arteterapia em ILPIs, em Instituição privada do interior de São Paulo em funcionamento desde 2008. O trabalho consistiu em 7 encontros nos quais pretendia levantar, em um primeiro momento, questões pertinentes a relação aos idosos e o convívio entre eles, para depois pensar nas atividades mediadoras. Durante a realização das atividades, sempre era promovido um momento de reflexão, visando compreender o impacto da atividade na experiência de vida dos idosos.

Entretanto, apesar do foco da pesquisa ser atividades arte-terapêuticas com os idosos, me deparei com a falta de autonomia, pois sempre que iniciava a atividade convidava cada morador para participar, respeitando suas escolhas de aceitar ou não, porém os funcionários da Instituição reuniam todos os idosos, sem exceção, para participar das atividades, tornando-a obrigatória.

Segundo eles, os idosos deveriam participar de todas as atividades oferecidas pelo local, pois, caso contrário, estaríamos aderindo ao desejo dos idosos, não fazendo jus ao valor depositado no local. Este foi o padrão que se repetiu e o projeto de pesquisa não pode ser concluído, e assim me deparei com uma das formas pela qual os idosos perdem a independência e a autonomia.

Atualmente, em consultório, continuo me deparando com essa falta de autonomia dos idosos, pois é comum os filhos entrarem em contato comigo para agendar uma consulta para seus pais, por diversos motivos, desde possíveis depressões ou ansiedades, ou até mesmo por acreditarem que seria bom para o idoso possuir um local para “desabafar”.

Todavia, quando pergunto se é interesse do idoso passar por um processo psicoterapêutico, acabo descobrindo que o idoso sequer foi consultado. Procuro orientar para que, primeiramente, o idoso seja consultado, e se há desejo em participar, e só depois faço o agendamento. Contudo, já cheguei a receber idosos que, supostamente, sabiam da consulta, conforme os próprios filhos haviam confirmado, e no fim se apresentava um idoso que não tinha ideia do que fazia ali.

Para não retirar a autonomia e independência do idoso é importante avaliar as atividades diárias para que ele se sinta parte do contexto doméstico e familiar. No entanto, é comum os familiares inibirem sua participação nas atividades diárias, tornando-o dependente de terceiros, comprometendo sua capacidade funcional (MELO, 2017). Também é comum, e talvez cultural, nos depararmos com relatos de filhos que dizem que possuem pais “teimosos”, como se falassem de crianças, e até mesmo se autodenominando pais de seus pais.

Partindo destas observações, podemos pensar sobre o principal estudo de Merleau-Ponty – Fenomenologia da Percepção 1996/1945 – no qual aborda a constituição de corpo. Conforme Reynolds (2014) ressalta, o corpo deveria ser concebido como um meio de comunicação com o mundo, e não um mero objeto ‘bruto’ no mundo, que apenas executa funções ordenadas pela mente.

Segundo Merleau-Ponty nosso corpo não é um objeto, mas sim um agrupamento de significados, vivenciados ao longo da vida, e que se move em direção ao equilíbrio. Pensamos então, que o idoso possuiu uma mala repleta de experiências, e ele só poderá ocupar um espaço se estiver sentindo-se pertencente.

Através destas elaborações, em que se entende o corpo como ligado diretamente ao ambiente e a consciência, ressalta-se o aspecto observado nas relações com os idosos. Desta forma, outra concepção de extrema importância para Merleau Ponty, e que pode ser aqui ressaltada, é o estudo sobre a opressão. Segundo o autor, no momento em que essa concepção do corpo é problematizada, também é problematizada a ideia de um mundo exterior por meio do sujeito pensante. Segundo ele, os movimentos de um objeto revelado a um indivíduo são dependentes de sua posição corporal, sendo o corpo-sujeito a condição para experienciar objetos (REYNOLDS, 2014).

Explica Reynolds (2014, p.181), a partir dos estudos de Merleau-Ponty, que “se tivermos sido oprimidos por um período considerável, nossa consciência pode estar habituada de tal modo que certas formas de conduta se tornam manifestamente improváveis”. Compreende-se, desta forma, a partir do observado na pesquisa, que ao ter seu desejo reprimido o idoso passou a fazer parte de um ambiente movido por regras, que vão além de seu desejo consciente e que interferem diretamente em sua concepção do corpo. Portanto, a partir do momento em que se impõe a obrigatoriedade, cria-se um movimento de opressão.

Um ponto de reflexão, nesta perspectiva, é o projeto Envelhecimento Ativo, que, teoricamente, consiste em um processo de otimização da saúde, participação e segurança dos idosos, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e aumentar a expectativa de vida saudável, por meio de atividades físicas, grupais ou individuais, além de atividades de recreação (OMS, 2005).

Segundo este documento, o idoso deve ser ativo, participar das atividades grupais, se relacionar com os demais em seu grupo e ser saudável, criando ‘normas’ para a longevidade, como receitas, as quais os idosos devem seguir, sem ao menos ser considerado qual seu verdadeiro desejo, novamente ‘arranhando’ sua autonomia.

Muitos estudiosos já repensam a forma como o Envelhecimento Ativo foi implantado e continua sendo um guia de referência para o envelhecimento na nossa sociedade. Segundo Ribeiro (2012) o chamado Envelhecimento Ativo apresenta uma noção de atividade associada à participação social, econômica e cultural, que vai além da ideia de atividade física, mas que não é empregada de forma correta, com uma conotação minimalista do processo e desapropriando-o de um objetivo mais abrangente.

Para o autor, é importante que o termo tenha seu verdadeiro significado corretamente aplicado, principalmente abrangendo as políticas públicas e culturais. Afirma que:

Dada a escassez de reflexões científicas sobre o termo, suas definições, potencial inclusivo e/ou de segregação, talvez termos como “envelhecer bem” remetam para um paradigma mais inclusivo (se bem que mais vago também), já que permitirá às pessoas mais velhas definir, elas próprias, o que tal significa para elas e, deste modo, indicar o que necessitam para consegui-lo em face às suas incontornáveis circunstâncias pessoais, sejam elas determinadas pelo inexorável peso da idade, ou pela frequência de problemas de saúde impossibilitadores de um exercício pleno de independência. (RIBEIRO, 2012, p. 49).

Ressaltamos então que, para a psicologia humanista a autonomia é vista como um iniciador de coisas novas, e a pessoa como um ser desafiado pela vida, chamado a responder criativamente (MERLEAU-PONTY, 1996; FRANKL, 1989).

A psicologia voltada para o envelhecimento evidencia as mudanças nos desempenhos cognitivos, afetivos, sociais, e alterações em motivações, interesses, atitudes e valores, como características da idade avançada. Busca também realçar as diferenças entre os idosos e o envelhecer, através das características que os diferenciam, como idade, sexo, grupo, educação e cultura. Consideramos, então, que o trabalho do psicólogo consiste em oferecer um cenário de diálogo para que a autonomia seja promovida, portanto, compreende a autonomia como a capacidade que o ser humano tem em orientar sua própria vida, para si e para a coletividade.

Assim, através das observações, torna-se visível a necessidade de promover reflexões, além de um espaço para que possam tomar seu corpo para si. Como indica o filósofo Merleau-Ponty, perante o desafio de se ajustar ao meio em que vive, o corpo torna-se melhor compreendido enquanto mantém-se um diálogo entre o organismo e o meio (REYNOLDS, 2014).

Para finalizar, acredito que devemos sempre pensar no “para quem?”:

• A atividade proposta é boa para mim ou para o idoso?

• Será bom para mim, que irei me tranquilizar por fazer algo ou será bom para os meus pais idosos?

• Devo aderir a tal procedimento porque eu quero ou porque será bom para o idoso?

Podemos pensar que o essencial para um “envelhecer bem” seria permitir que os próprios idosos definissem o que é o bom para o seu processo de envelhecimento, dando a cada ser único a oportunidade de escolher como irá envelhecer, o que é realmente bom ou não a partir de sua concepção e sua relação com o mundo, sem que haja um padrão ou regras para seguir, respeitando assim a autonomia.

Referências:

ANDREOTTI, R. A; OKUMA, S. S. Validação de uma bateria de testes de atividades da vida diária para idosos fisicamente independentes. Rev Paul Educ Fis, n.13,1999.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.2.528 de 01 de outubro 2006. Aprova a Política Nacional da Pessoa Idosa. 01 out. 2006, Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

FRANKL, V. Um sentido para a vida. Aparecida: Ed. Santuário, 1989.

MELO, M. C. C. Autonomia e Independência do Idoso. Minas Gerais: Mediclogic, 2017.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Originalmente publicado em 1945).

MESQUITA, P. M.; PORTELLA, M. R. A gestão do cuidado do idoso em residências e asilos: uma construção solitária fortalecida nas vivências do dia[1]a-dia. In: PASQUALOTTI, A.; PORTELLA, M. R.; BETTINELLI, L. A. (Org.). Envelhecimento humano: desafios e perspectivas. Passo Fundo, 2004. p. 72- 94.

OMS – Organização Mundial de Saúde. Envelhecimento ativo: uma política de saúde / World Health Organization; tradução Suzana Gontijo. – Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2005.

REYNOLDS, J. Existencialismo. 2. ed. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

RIBEIRO, O. O envelhecimento “ativo” e os constrangimentos da sua definição. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, nº 02, 2012, pág. 33-52.

UENO, L. M. A Influência da atividade física na capacidade funcional: Envelhecimento. Rev Bras Ativ Fis Saúde, v. 4, n. 1, p. 57-68, 1999.

Data de recebimento: 15/06/2019; Data de aceite: 15/06/2019.

Publicado em:

Rev. Longeviver, Ano I, n. 3, Jul/Ago/Set, São Paulo, 2019.

ISSN 2596-027X.